sexta-feira, 7 de abril de 2023

Heaven Hotel

À primeira vista, os cães. 

Dóceis e preguiçosos, passeavam no saguão.  

O lustre pendente Art Decò, a ampla escada em degraus de madeira lustrosa, que conduzia até o piso superior. 

O caminho até o balcão de check in e a música, 

embalando nossos passos na voz de John Travolta. 


Os olhos baixos da recepcionista. Recebemos a chave, com um meio sorriso condescendente e carregamos nossas malas escada acima, acompanhados pelas canções do Abba. O quarto apertado, inundado pela festa no restaurante embaixo, animada ao som de Bonnie Tyler.


A música. Talvez a primeira percepção de que algo transbordava da paisagem concreta, da aparente solidez das paredes, das formas retas e grandes volumes da arquitetura modernista. E nada nos convencia da nossa pétrea presença, em frente ao balcão da recepção, esperando que a atendente terminasse sua conversa ao telefone e nos dirigisse sua atenção.


- Não gostamos do quarto, muito barulhento. Podemos trocar?

- O hotel está lotado.

- Este barulho vai até que horas?

- Não sei, sou só a folguista. Talvez 22h. Talvez 22:30h. 

- O que é uma folguista?

- É quem assume quando a recepcionista está de folga.

- E quem pode nos informar quando o barulho vai acabar?

- Vou perguntar ao seu Antenor.


À entrada do restaurante. Aparentemente, algum evento, buffet, pessoas bebendo, mesas desarrumadas. Ninguém veio ao nosso encontro, escolhemos uma mesa vazia e corremos os olhos ao redor. Os garçons atravessavam incessantemente tigelas de alimentos pelo salão. Acenamos a um garçon que aproximou-se indeciso e, logo atrás, veio o Seu Antenor, que lhe tomou a frente.


- Hoje temos o buffet, só poucas opções a la carte - e nos entregou um menu plastificado.

 O maitre. Seu Antenor pareceu meio incomodado com a atenção que solicitávamos.  Tinha olhos flutuantes atrás de pequenos óculos retangulares. Olhava ora para outras mesas, ora para o movimento dos garçons, anotou rapidamente nossos pedidos, mas esquecendo logo depois, voltou à nossa mesa para confirmar. E esperamos, em vão, a nossa refeição, onde a comida parecia circular por todos os lugares, nunca pousando em nossos pratos.

Seu Antenor parecia concentrar muitos poderes, entre eles, como descobrimos mais tarde, o poder de ligar ou desligar a música. Era dado a aparições e desaparições, saindo de portas escondidas, desaparecendo na cozinha durante o café da manhã, ou vigiando os corredores como um espectro na noite. Algumas vezes dava  muitas ordens, desnorteando os funcionários e, outras vezes, se ocupava diligentemente de tarefas prosaicas, como dobrar os guardanapos de pano, empilhados em uma mesa lateral.


Recém-chegados podem demorar a perceber, que o Heaven Hotel tem vida própria. Como um organismo que se alimenta e se especifica em suas funções fisiológicas, de forma mais ou menos autônoma. Mas os cães sabem, assim com as ovelhas que pastam no jardim, e já se incorporaram ao organismo. Ignoram os hóspedes, passeiam em meio a eles, fazendo pouco caso dos afagos e das tentativas de aproximação, como se convivessem com pulgas. Somos intrusos hospedeiros, que casualmente atrapalham o funcionamento, o vai-e-vem dos garçons, os afazeres dos muitos funcionários, que tentam ignorar-nos para se dedicarem à sua tarefa principal: manter o organismo vivo.


Aos poucos, nos damos conta de que: 1. podemos nos rebelar exigindo atenção às nossas exigências, correndo o risco de sermos regurgitados, ou 2. aproveitamos nossa obscuridade para habitarmos desapercebidos os cantos vazios, os sofás devolutos, as inúmeras mesas sobressalentes, os infinitos corredores, as sombras dos jardins ondeantes. Até que se acostumem à nossa presença, permitindo que façamos nossos ajustes por conta própria.

 

Por uma indiscrição de uma funcionária, soubemos de um quarto vazio nos fundos do hotel. Sorrateiramente, pegamos a chave e fizemos nossa mudança, transportando malas e sacolas, uma a uma até o fim do corredor. O cheiro de mofo e água parada resolvemos com um pequeno ajuste no sifão da pia. Mudamos os móveis de lugar, convencemos as arrumadeiras a nos fornecer toalhas e lençóis limpos, contrabandeamos uma TV de um dos inúmeros auditórios. Contemplamos, com satisfação, nossa pequena habitação furtiva. As amplas janelas nos permitiam acordar com a diáfana luz da manhã e os balidos das ovelhas no jardim.


Os itens que nos faltavam no café da manhã surrupiávamos da cozinha, de onde também levávamos pratos, talheres, copos até o salão de jogos para montarmos nosso regabofe particular, em noites de carteado. E, a medida que não solicitávamos nada, ninguém parecia se incomodar com nossa presença, ou atentar para nossos movimentos insolentes.


Tenho experimentado ulteriores subversões. Passeio de pijama pelo saguão, olhando de soslaio para a folguista, sempre ela, de olhos baixos, ignorando minha dancinha nos embalos de sábado à noite. Perambulo vagarosamente pelos corredores, vigiada apenas pelas luzes fantasmas, que se acendem, uma a uma, entre meus passos, e se apagam às minhas costas, mergulhando a passagem pregressa novamente na escuridão sussurrante. 


Faço um inventário dos ruídos emitidos em cada cômodo, da onipresente música “disco” que irradia das caixas de som espalhadas pelo teto, aos ecos que ressoam no galpão da piscina, rebatendo-se nas paredes e alcançando as janelas da sala de leitura. O jogo de futebol na sala de TV, as crianças explorando as entranhas dos salões subterrâneos e suas escadas que desvanecem na profundidade labiríntica.



Todos esses sons compõem um cenário viscoso, que quase posso tocar com as mãos. E o ar passa a ter uma densidade na qual me deixo apoiar e embalar. Entre a sucessão dos dias e noites, adotamos essa cumplicidade, meus companheiros e eu.  Aceitamos a nossa condição de pequeno incômodo, sobras que se acumulam minúsculas sobre os móveis agigantados. Nas manhãs nos cumprimentamos apaziguados, nas noites embaralhamos as cartas entre sorrisos e taças de vinho, o jogo avança a madrugada, ao som de Bee Gees. Não há toque de recolher, não há hora de silêncio no Heaven Hotel. Não há pressa, não há pressa…